Substância e atributos em Spinoza

Substância e atributos em Spinoza12 minutos de leitura

Quando se trata da relação entre substância e atributos, a obra de Spinoza gera um debate que ainda está longe de se concluir. Acompanhe neste artigo algumas considerações importantes para se entender este assunto.

Contextualização

De onde vem a ideia de Substância e atributos na obra de Baruch Spinoza?

Ética

Este livro, publicado postumamente, é o principal livro de Spinoza. O livro está dividido em cinco partes. Na primeira parte, intitulada “Deus”, ele apresenta o seu conceito de substância, e logo após, os conceitos de atributo e modo.

Como ponto inicial, Spinoza define Deus. Depois explica suas definições. Logo após a definição de Deus, ele define subastância, atributo e modo, para, em seguida, explicar que Deus é “(…) uma substância que consiste de infinitos atributos (…)”.

O propósito deste texto

Existem diversas abordagens do pensamento de Spinoza, cada qual com um enfoque. Alguns interpretam a visão de Deus dele como monista, outros como panteísta; outros ainda, consideram Spinoza ateu. É importante entender que não existe um concenso, por mais que um ponto de vista não anule o outro, necessariamente.

O propósito aqui é resgatar a visão de Spinoza, e ficar o mais próximo possível do que ele quis dizer. Para isso uma certa dose de distanciamento de discussões sem fim e múltiplas interpretações, se tornou necessário. Esse artigo procura transmitir a essência do pensamento spinozano, ao se concentrar na definição de substância e atributo, e em como diferenciar uma coisa da outra.

Substância em Spinoza

Para entender melhor o que substância significa em Spinoza, o ideal é partir dos conceitos básicos, desde as concepções antigas até a visão atual. Tales de Mileto foi o primeiro a empregar esse conceito ao afirmar que a água era a substância de todas as coisas. A palavra deriva do latim substantia, “o que está por baixo”, e refere-se ao que permanece e se mantém fixo através das mudanças. Outros filósofos tiveram suas próprias definições de substância e durante muitos séculos este foi um conceito-chave na filosofia. Porém, pouco a pouco essa concepção foi dando lugar à ideia de “processo”, que domina a filosofia contemporânea.

Para Spinoza, substância tem o significado daquilo que existe por si só, sem depender de atributos. Essa visão é ligeiramente diferente da substância em Heráclito, que considerava o fogo como a origem de tudo. Isso porque o fogo precisa de madeira, por exemplo, para queimar. A visão de Spinoza também é diferente da de Descartes, pois este considera a existência de três subastâncias: o corpo, a alma e Deus. Esse é um ponto de divergência central entre o pensamento de Descartes e o de Spinoza, pois, enquanto para Descartes são três as substâncias, para Spinoza é apenas uma.

Spinoza define subastância como ” (…) aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado. “

Atributos em Spinoza

Atributo é o que o intelecto percebe da substância como sendo sua essência. Como a substância é concebida por si mesma, o atributo também precisa ser concebido por si mesmo. Porém, a substância é constituída de infinitos atributos. Aqui ocorre um choque entre a definição de substância como sendo única, e dos atributos como sendo infinitos; pois se o atributo precisa ser concebido por si, tal qual a substância, ele não poderia ser em número infinito, mas apenas um único atributo, como a substância, já que é a percepção da essência desta.

Uma forma de entender esse intrincado raciocínio é pensar que os “infinitos atributos” que Spinoza diz que a substância possui, não é um infinito em termos numéricos. Ou seja, o infinito do atributo é o mesmo infinito da substância. Substância e atributo são, portanto, a coisa em si e a percepção da essência da coisa. Se a coisa em si é infinita, a percepção dela deve ser igualmente infinita, ou, em outras palavras, a percepção do infinito.

Como compreender conceitos, que num primeiro momento, demonstram-se contraditórios?

A própria forma (geométrica) como Ética está escrito, vai se desdobrando em uma espécie de tema e variação. Para dissipar a contradição que fica no ar, o seguinte trecho de Ética pode ser útil:

“A ordem e a conexão das coisas é igual à ordem e conexão das ideias” (idem est ordo et connexio rerum ac ordo et connexio idearum).

Ética, parte II, proposição 7.

Diferença entre atributo e substância

Para absorver tal raciocínio, é necessário seguir o fio de Ariadne desentrelaçado por Spinoza através da relação que concebe entre a substância e os atributos.

Substância, segundo sua formulação, é uma totalidade infinita, mas não porque é a soma de atributos infinitos. Ela é infinita, precisamente porque não inclui dentro de si um número infinito de atributos. Se a substância é o que é absolutamente em si, só pode ser infinita, isto é, indelimitável por qualquer coisa.

Este é, em última análise, o raciocínio de Melisso de Samos: o ser deve ser infinito, porque o ser não pode ser delimitado por outro ser.

Substância e atributos em Spinoza

Mas a substância é infinita, não porque não inclui dentro de si um número infinito de atributos. A substância não é feita de atributos (múltiplos), pois o atributo é definido por Spinoza como o que o intelecto percebe da substância, como constituindo a sua essência. Enquanto a substância é o que é concebido em si. Tanto a definição de Subastância quanto a de atributo são a definição de uma coisa só, e não de várias substâncias, assim como também não, de vários atributos.

Portanto, é possível concluir que a substância é um atributo, sendo o atributo o que se percebe da substância. E então Spinoza escreve: “todo atributo expressa, portanto, uma essência eterna e infinita, logo, a essência infinita da substância” (Ética, parte 1, definição 6).

O que os atributos expressam

Partindo desse pressuposto, pode-se afirmar que, no que diz respeito aos atributos, a essência que estes expressam é uma (e sempre uma), ou seja, a mesma constantemente. Não se trata de um, mais um, mais um, mais um, ad infinitum, como se a substância fosse feita de inúmeras essências percebidas pelo intelecto. O intelecto capta apenas uma essência, mas de formas diferentes, que são as atribuições, ou atributos da substância.

Cada atributo expressa a totalidade da substância, especificada num gênero que é sempre um, ou seja, todo um. Portanto, não se pode absolutamente pensar na substância como se a sua totalidade fosse o conjunto, a soma, o agregado destes atributos infinitos numericamente (um mais um). Mas devemos pensar que cada um é toda a substância “intensive”. A existência infinita da substância é completamente indiferente de quantos atributos existem, porque os atributos são indiferentes.

A relação dos atributos entre si

No entanto, isso também deve ser dito em relação aos atributos entre eles. Nem mesmo um atributo delimita o outro: isto é certo, disse-nos Spinoza, embora continuemos a pensá-lo no plano da mera definição formal.

Por exemplo, acreditamos que o pensamento não é delimitado pela extensão, porque são coisas heterogêneas. Mas essa não é questão. Na verdade, cada um deles concebe toda a essência da substância, e não uma parte.

Estamos trabalhando no grande problema de Platão sobre como os indivíduos relacionam-se com a ideia: grandes problemas da metafísica, e são precisamente essas questões que Spinoza aborda à sua maneira.

Como cada atributo concebe toda a essência da substância em seu gênero, então este é indelimitável pelo outro, porque ele próprio já possui toda a essência. E por isso se diz na segunda definição( Ética, p. 13): “(…) um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo.”

Spinoza, Malebranche, ocasionalistas e Descartes

Se colocarmos a questão no plano, óbvio à primeira vista, segundo o qual não conseguimos pensar em parar uma coisa em movimento com o pensamento, ou não conseguimos pensar em fazer com que a coisa extensa pense porque estamos lidando com coisas heterogêneas, então ainda pensamos como Malebranche, como os ocasionalistas e finalmente como Descartes; isto é, estamos pensando que as extensões são “res”, substâncias, e que os pensamentos são também, por sua vez, “res”, substâncias.

Eis o grande problema que na história da filosofia está precisamente classificado no capítulo do Ocasionalismo. Um grande problema que não acomete apenas o Ocasionalismo, mas acorre ainda hoje, com as atuais discussões insensatas sobre a relação mente-corpo, sobre o cérebro, o pensamento, etc. Surgindo daí a grande questão: como uma substância inteira, sem partes, integra as percepções de coisas que, em vez disso, são feitas de partes?

Como Spinoza supera esse problema

É consensual o fato que Spinoza a “resolve” ou “supera” esse problema, enquanto nega a substancialidade da extensão e dos pensamentos; assim como concebe os dois como atributos da substância. Mas Spinoza não pensou essencialmente numa ponte entre duas heterogeneidades; nem pensou de forma simplista e verbalista que se extensão e pensamento são ambos atributos da substância, o problema estaria resolvido, dado que já pertencem por definição à substância, já estão na unidade da substância.

A grandeza de Spinoza, o que efetivamente ultrapassa o dualismo cartesiano, o que, na verdade, tem algo a ensinar também a nós, ainda dualistas cartesianos em toda a organização da investigação científica, reside nessa questão: Spinoza diz precisamente que não possuímos duas “coisas” como dois atributos, atributos não são coisas e não são delimitáveis entre si e, portanto, não somos um número finito nem infinito. Pelo contrário, trata-se de compreender que cada atributo é sempre um, é a única substância. Portanto, é o mesmo dizer que a substância é extensa e dizer que a substância é pensada. Por essa razão não há sentido em dizer que a substância é inteligente, boa, etc. Dizer que a substância é extensa é igual a dizer que a substância é pensante.

Concluindo, os atributos são indelimitáveis: são infinitos não numericamente, mas na medida em que cada um deles é a própria infinidade da substância, vista em um gênero.

Resolução desse problema: conclusão

Portanto, esta mesma indiferença é infinita. Dizer exatamente que, a substância é extensa e pensada; é a mesma coisa; é indiferente à substância no que diz respeito aos seus atributos, porque os atributos são indiferentes a ela, não diferentes.

Portanto, o que é infinito é essa diferença. É infinitamente indiferente se dizemos extenso ou pensante, pois, a qualificação atributiva da substância (como qualificação atributiva da totalidade), é por sua vez total, ou seja: indelimitável, indefinível.

O que é incorreto ao se definir um atributo

Não podemos definir um atributo com o outro, porque cada atributo é infinito em si, no seu gênero, e é percebido como a substância, da qual exprime a essência.

Não há definição de inteligência, não há definição de matéria: elas se mostram como o Mesmo, e por isso não podem ser quantificadas nem podemos dizer que existem infinitas maneiras de definir a substância com infinitos atributos numericamente.

Então podemos especular: o que são esses atributos infinitos? São infinitos em sua indiferença, infinitos em seu gênero, de modo que um é indiferentemente ao outro? Em resposta, segundo o pensamento de Spinoza, os atributos são a transcoloração continua da substância através deles, constituindo-se como pura transitividade e traduzibilidade, de tal forma que um é exatamente idêntico ao outro, o substitui de forma idêntica em seu gênero.

Epílogo

Todavia, depender apenas da razão para compreender as nuances de Spinoza talvez não seja suficiente. Nesse sentido, a intuição não deve ser descartada, pois pode complementar a razão, e não anulá-la, como facilmente poderíamos pensar. Porém é preciso clareza sobre a natureza da intuição, para não cair no erro de sonhar acordado e perder de vista a objetividade da razão.

Romper a borda imaginária do universo é essencial, porque a substância não é uma coisa, mas sim o próprio cruzamento de seus atributos, que são continuamente um, o duplo e o reverso do outro e cada um é a substância inteira.

Pensar esta transmutação, cada um sendo o reverso do outro e cada um sendo a substância total (um pensamento claramente contraditório para a lógica do finito) é o nó górdio a ser desatado; compreendido, se o compreendermos, sendo o nó do Mesmo e do Outro, então talvez o pensamento de Spinoza possa revelar-se diante de nossos olhos com todo seu esplendor.

Texto adaptado da postagem de Adriana Dweck do dia 10 de março de 2024, e publicado no AudioFilo com autorização.

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