Enquanto de um lado pode-se pensar em liberdade num sentido abstrato, noutro a liberdade assume um caráter concreto. No existencialismo, a própria existência do indivíduo é um processo de tornar-se si mesmo através de suas escolhas. Há diversos pontos de vista, uns mais práticos, outros mais poéticos, mas nenhum é menos importante que o outro. Por não se ter uma resposta definitiva e uma forma de se mensurar satisfatoriamente a liberdade; não é possível decretar um ponto de vista mais verdadeiro que outro. Se uma liberdade poética, que ilustra a liberdade como um pote de ouro no fim do arco-íris te dá a sensação de que falta muito a se dizer a respeito, uma visão existencialista, como a de Sartre e Kierkegaard, pode cair como uma luva. A liberdade, vista dessa forma, é especialmente boa para se analisar a relação entre liberdade e autenticidade.
O papel da liberdade dentro de uma vida autêntica
O ponto de vista que venho demonstrar diz respeito mais à autenticidade do que à liberdade, pois o foco da análise está naquela, enquanto essa é uma ferramenta para atingi-la. Isso não significa, porém, que a liberdade não possa ser tratada em termos de um pensamento especulativo, mas que não se reduz a isso. Para se atingir o seu eu verdadeiro, há uma necessidade de se escolher entre o que se quer e o que se precisa, por exemplo. Nisso vemos duas ideias interessantes, a de que nos tornamos quem somos e a autenticidade de quem nos tornamos.
Me torno quem sou, ou descubro quem sou?
Dentro do contexto em que eu me torno quem sou, em oposição existe a ideia de que eu descubro quem sou. Em termos práticos, significa que, se eu sou professor, eu me torno professor ao adquirir um diploma, depois passar em um concurso e ir dar aula. Todo o meu caminho demonstra que eu me tornei um professor. Todavia, eu posso também descobrir que sou professor, no sentido que descubro um dom que nem sabia que tinha, ou ainda porque descubro que amo minha profissão. Me parece bastante plausível a veracidade de descobrir-se ou tornar-se quem se é, nesse exemplo.
Quando se trata de falar em escolher o seu próprio caminho, levando em conta os desejos de (suposta) realização, assim como as necessidades de sobrevivência, o existencialismo pode oferecer uma boa base para entender o assunto. Se, ao fazer escolhas, eu determino quem sou, então eu não descubro quem sou, mas me torno quem sou. Porém, a liberdade de escolha que conduz a uma vida significativa não diz respeito à escolhas arbitrárias. Nesse sentido, descobrir-se a si mesmo deixa de ter um posicionamento oposto a tornar-se si mesmo. E sendo assim, o descobrir-se a si mesmo, que carrega significado, pertencimento, sentido e autorrealização; se encontra presente no tornar-se si mesmo.
A questão da autenticidade
Levar uma vida autêntica não é questão de concordância, nem de discordância. É questão de fazer escolhas deliberadas e conscientes. Se essa vida autêntica vai ser boa ou ruim, para si e para os outros, é outro assunto. Se a pessoa vai ser feliz ou não levando essa tal vida autêntica, também é outro assunto. O que não existe é vida autêntica sem escolha deliberada. Qualquer um e tanto faz não leva ninguém a uma vida autêntica. Ou pelo menos esse é o ponto de vista do existencialismo. Dito de outra forma, ninguém pode tornar-se uma pessoa autêntica se não escolher o seu próprio caminho de acordo com os seus princípios. Isso inclui a possibilidade de escolher aquilo que outrem não escolheria.
A autenticidade está sempre intimamente ligada à liberdade, e quanto maior esta, maior a possibilidade daquela. Entretanto, uma maior liberdade não significa necessariamente maior autenticidade, apenas uma maior possibilidade de ser-se mais autêntico.
Neutralidade versus extremismo
Liberdade de escolha significa poder escolher, desde o ponto mais extremo de um espectro até o outro ponto mais extremo. A escolha, portanto, está sempre relacionada com um posicionamento dentro de um espectro, que pode ser associada a curva de Gauss. Se alguém pode escolher possibilidades dentro de uma faixa mais estreita de opções, em relação a outra pessoa, diz-se que a primeira pessoa tem uma liberdade menor que a segunda. Mas o que vai determinar a autenticidade maior ou menor dessas duas pessoas não é a maior ou menor liberdade para escolher entre inúmeras, ou poucas opções. O que é determinante na autenticidade de cada um é o quanto a escolha é consciente e significativa para quem escolhe.
Ora, é evidente que, se a uma pessoa são dados 1000 números para que ela escolha e ela escolhe “qualquer um” aleatoriamente; enquanto a outra pessoa são dados 100 números e ela escolhe 30, porque é sua idade, a segunda escolha tem um significado e a primeira não.
Mas isso também nos coloca perante um paradoxo, em que somos obrigados a escolher para exercer nosso verdadeiro eu. Uma situação pra lá de incômoda e angustiante, que faz com que as pessoas se sintam deslocadas de si se não passarem o tempo todo apontando o dedo em todas as direções e dizendo “isso sim, isso não, isso sim, isso não”. Já é de se questionar se nesse levantar de bandeiras obrigatório estamos realmente exercendo nossa liberdade de escolha, ou apenas agindo por condicionamento.
Liberdade como mera escolha
A questão da liberdade, fundamental para a existência autêntica, não deve se degenerar em um reducionismo ingênuo. Escolher é apenas uma fatia no bolo. O erro capital que deve ser evitado é o de achar que poder de escolha é proporcional a autenticidade da vida que se leva. Quantas pessoas cheias de possibilidades de escolha levam uma vida vazia e apática?
Como Raulzito fala em Ouro de Tolo:
Quem apenas aceita a realidade como ela é, sem nunca realizar uma epoché, de forma sincera e visceral, não pode dizer que vive sua vida como quer, e que como si mesmo não há igual. Escolher por escolher não é liberdade, é a mesma coisa que nada. Escolher o que todo mundo escolhe nem escolher é, ou seja, é menos que nada. Uma pessoa que é fruto de algo tão insignificante quanto isso não pode ser considerada uma pessoa autêntica.
Liberdade como mais do que apenas escolhas e autenticidade através de mudanças
Da mesma forma como é muito fácil cair no erro de achar que liberdade é apenas escolher, e que isso por si só proporciona uma existência autêntica, é muito fácil se enganar achando que ser autêntico é ser sempre a mesma pessoa. Anteriormente, falamos em tornar-se o que se é. Quando se fala em tornar-se alguém, isso inevitavelmente pressupõe um processo, que sem mudanças não ocorreria. É impossível conciliar a ideia de que eu me torno quem sou com a ideia de que eu devo ser sempre o mesmo. Uma pessoa que não muda nunca é legítima.
A liberdade assume um papel importante aqui, mais uma vez. Mas quando consideramos que a autenticidade da existência está diretamente ligada às mudanças, a liberdade assume um papel de libertação. É na libertação de si, na libertação de seu velho eu, obsoleto e desgastado, que ocorre a modificação para uma nova versão de si, mais verdadeira.